EUA e China administram mais de 90% dos centros usados por terceiros para executar tarefas ligadas à IA

IA – No mês passado, Sam Altman, CEO da OpenAI, visitou as obras do novo centro de dados da empresa no Texas, trajando capacete, botas reforçadas e colete fluorescente. O complexo, que ultrapassa em tamanho o Central Park, tem orçamento estimado de US$ 60 bilhões e contará com sua própria usina a gás natural. A expectativa é que se torne um dos mais potentes centros de computação já construídos, com previsão de conclusão para o próximo ano.

Enquanto isso, na Argentina, Nicolás Wolovick, professor de ciência da computação da Universidade Nacional de Córdoba, liderava um dos centros de IA mais modernos do país, instalado em uma sala adaptada da universidade, repleta de cabos e servidores antigos. “Está tudo cada vez mais dividido”, afirmou Wolovick.

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Cisão mundial e desigualdade

A ascensão da inteligência artificial está gerando uma nova cisão digital global. Países com infraestrutura tecnológica conseguem criar sistemas avançados, enquanto outros, sem acesso a esse recurso fundamental, ficam à margem da revolução.

Essa desigualdade já impacta a geopolítica e a economia internacional, intensificando a corrida por protagonismo tecnológico, que promete transformar mercados, impulsionar descobertas e alterar profundamente a vida cotidiana.

Estados Unidos, China e União Europeia concentram mais da metade dos centros de dados de alta performance, segundo levantamento da Universidade de Oxford. Apenas 32 países — cerca de 16% do total — possuem instalações com os chips e equipamentos necessários para obter o chamado “poder computacional”.

Estados Unidos e China exercem domínio particular sobre essa infraestrutura. Juntas, empresas dos dois países administram mais de 90% dos centros usados por terceiros para executar tarefas ligadas à IA, de acordo com dados da Oxford e outros estudos.

Por outro lado, a maior parte do planeta segue distante dessa capacidade. África e América do Sul quase não têm centros de IA. A Índia conta com ao menos cinco, e o Japão, com quatro. Mais de 150 países não têm nem sequer uma instalação do tipo.

Diferentes dos antigos centros de dados, que serviam para e-mails e vídeos online, os atuais são colossos energéticos repletos de chips de última geração. São caríssimos — demandando bilhões de dólares — e exigem estrutura elétrica e de resfriamento que muitos países não têm como oferecer.

Com poucas empresas controlando a maior parte dos equipamentos, os efeitos da disparidade já são perceptíveis. Os sistemas mais populares, como o ChatGPT, funcionam melhor em inglês e chinês — reflexo do local onde são treinados.

Empresas com acesso privilegiado à infraestrutura estão aproveitando a IA para tratar dados, criar soluções e acelerar pesquisas. Avanços em saúde, como a descoberta de remédios e edição genética, também dependem dessa tecnologia. Armamentos baseados em IA já são utilizados em conflitos reais.

Nações com pouca estrutura enfrentam dificuldades em pesquisa, inovação e retenção de profissionais. Governos temem se tornar dependentes de potências e corporações estrangeiras.

“Países produtores de petróleo sempre exerceram uma influência desproporcional nos assuntos internacionais; num futuro próximo movido por IA, os produtores de poder computacional podem ter um papel semelhante, já que controlam o acesso a um recurso crítico”, avaliou Vili Lehdonvirta, professor de Oxford e autor do estudo com Zoe Jay Hawkins e Boxi Wu.

A importância estratégica dos chips e centros de dados é tamanha que eles se tornaram peças centrais nas políticas comerciais e diplomáticas de EUA e China, que disputam influência em regiões como o Golfo Pérsico e o Sudeste Asiático.

Em resposta à concentração, alguns países tentam investir recursos públicos para desenvolver sua própria infraestrutura de IA, visando reduzir a dependência externa e garantir soberania digital.

Os pesquisadores de Oxford mapearam os centros de dados de IA no mundo com base em clientes de nove grandes empresas de nuvem: Amazon, Google, Microsoft, Tencent, Alibaba, Huawei, Exoscale, Hetzner e OVHcloud.

Embora não cubra todo o cenário global, o estudo revela tendências nítidas. Empresas americanas operam 87 centros de IA — quase dois terços do total —, contra 39 da China e apenas seis da Europa. Os chips predominantes continuam sendo os da americana Nvidia.

“Temos uma divisão computacional no centro da revolução da IA”, afirmou Lacina Koné, diretor da Smart Africa. “Não é apenas uma questão de hardware. É a soberania do nosso futuro digital.”

Nas mãos de poucos

A distância tecnológica entre países desenvolvidos e em desenvolvimento não é novidade. Nos últimos anos, porém, houve avanços: o acesso à internet cresceu, smartphones se popularizaram, e startups prosperaram em várias partes do mundo.

Em 2023, cerca de 68% da população global estava online — em 2012, eram apenas 33%, segundo a União Internacional de Telecomunicações. Programadores com um laptop puderam lançar empresas, impulsionando negócios digitais da África ao Sudeste Asiático.

No entanto, a ONU advertiu, em abril, que essa tendência pode se reverter diante da concentração do setor de IA. Apenas cem empresas, a maioria nos EUA e na China, foram responsáveis por 40% dos investimentos globais na área.

Esse desequilíbrio se deve, em grande parte, a um componente-chave: os chips gráficos (GPUs), essenciais para a IA. Eles requerem fábricas que custam bilhões e são, em sua maioria, fabricados pela Nvidia. Com a demanda crescente, os preços das GPUs dispararam. E os chips precisam ser agrupados em enormes centros de dados que consomem grandes volumes de energia e água.

Países ricos conseguem acesso por meio de provedores globais. Já outros têm dificuldade em acompanhar. Segundo entrevistas com especialistas e executivos de 20 países, alugar poder computacional em outros continentes é comum, mas implica custos elevados, lentidão, exigências legais e dependência de políticas externas.

A startup queniana Qhala, fundada por uma ex-engenheira do Google, trabalha em um modelo de linguagem baseado em idiomas africanos. Sem centros de IA por perto, precisa contratar servidores no exterior. A equipe foca o trabalho nas manhãs, quando o tráfego nos EUA está mais baixo.

“A proximidade é essencial”, disse a fundadora Shikoh Gitau. “Se você não tem os recursos computacionais para processar os dados e construir seus modelos de IA, então você não consegue avançar”, afirmou Kate Kallot, fundadora da Amini, também no Quênia.

Nos Estados Unidos, as gigantes Amazon, Microsoft, Google, Meta e OpenAI planejam investir mais de US$ 300 bilhões este ano — soma próxima ao orçamento anual do Canadá. O Kempner Institute, da Universidade de Harvard, sozinho tem mais poder computacional que todos os centros africanos somados, segundo levantamento de supercomputadores.

Brad Smith, presidente da Microsoft, declarou que países estão investindo em infraestrutura como forma de garantir soberania. Mas o desafio é enorme, sobretudo em regiões sem fornecimento estável de energia. A empresa, em parceria com a G42, está construindo um centro no Quênia. Entre os critérios de escolha estão demanda, disponibilidade elétrica e mão de obra qualificada. “A era da IA corre o risco de deixar a África ainda mais para trás,” disse Smith.

EUA x China

A distribuição desigual do poder computacional dividiu o mundo em blocos: países alinhados aos EUA e países ligados à China.

Além de operarem a maioria dos centros de dados, os dois países lideram em planos de expansão. Essa dominância também é usada como instrumento geopolítico. Nos EUA, as administrações Trump e Biden impuseram restrições à venda de chips de ponta, permitindo ao país selecionar aliados. A China, por sua vez, recorre a empréstimos públicos para estimular suas empresas a venderem infraestrutura tecnológica no exterior.

Essa rivalidade é evidente em regiões como o Sudeste Asiático e o Oriente Médio. Nos anos 2010, empresas chinesas avançaram em projetos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos. Os EUA reagiram oferecendo acesso à IA americana, em troca de limites ao uso de tecnologia chinesa. Recentemente, o governo Trump firmou novos acordos para ampliar o fornecimento de chips a esses países.

O mesmo ocorre na Ásia. Gigantes como Amazon, Google, Alibaba, Nvidia e ByteDance estão erguendo centros em Cingapura e Malásia, visando abastecer o continente.

Dados da Universidade de Oxford mostram que empresas americanas estão construindo 63 centros de IA fora dos EUA. A China tem 19. E, entre os centros chineses no exterior, apenas três não usam chips da Nvidia — muitos foram adquiridos antes das sanções dos EUA.

(Com informações de O Globo)
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