Decisões recentes mostram falta de consenso entre ministros quanto aos limites da medida imposta por Gilmar Mendes
STF – A controvérsia em torno da pejotização — prática de contratar trabalhadores como pessoas jurídicas — tornou-se um dos principais pontos de tensão entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Justiça do Trabalho. Desde a reforma trabalhista de 2017, essa forma de contratação ganhou fôlego, provocando uma onda de ações questionando vínculos empregatícios camuflados sob a aparência de relações empresariais.
Em abril de 2025, o ministro Gilmar Mendes ordenou a suspensão nacional de todos os processos que discutem a legalidade desse modelo, no âmbito do Tema 1.389 da repercussão geral. A suspensão vale até que o plenário julgue o mérito da tese.
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Segundo Gilmar Mendes, a medida é uma resposta à multiplicidade de decisões divergentes da Justiça do Trabalho, que estariam minando a segurança jurídica e sobrecarregando o STF com recursos repetitivos.
Disputa sobre a extensão da suspensão
A decisão de suspensão, no entanto, passou a ser interpretada de formas distintas dentro do próprio Supremo. Embora divulgada como uma medida de alcance nacional, decisões subsequentes revelam que os ministros divergem sobre sua efetiva abrangência.
Em maio, o ministro Cristiano Zanin anulou decisão da 5ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto/SP que reconhecia vínculo empregatício entre uma advogada e a empresa contratante. Zanin considerou que o caso não se enquadrava no Tema 1.389 por envolver aplicação direta de precedentes do STF — a ADPF 324 e o Tema 725 — que validam modelos alternativos de contratação. Para ele, não havia simulação contratual e a relação estabelecida por pessoa jurídica era legítima.
Já o ministro Luiz Fux assumiu posição contrária. Em junho, determinou a suspensão de uma ação movida por uma advogada que buscava o reconhecimento de vínculo com um escritório, mesmo sem contrato formal. Fux entendeu que a demanda se enquadrava no Tema 1.389 por tratar de possível fraude à legislação trabalhista, o que justificava o sobrestamento.
A controvérsia também foi pauta da 1ª Turma do STF, em um caso envolvendo um motoboy e uma empresa de entregas. Zanin e Alexandre de Moraes defenderam que a suspensão não alcança processos já em curso no STF. Ambos também sustentaram que ações com indícios claros de subordinação, exclusividade e remuneração recorrente fogem ao escopo genérico da repercussão geral.
Cármen Lúcia e Flávio Dino expressaram preocupação com o impacto da suspensão sobre trabalhadores vulneráveis e com a coerência das decisões da Corte. Dino defendeu urgência no julgamento do mérito, diante da grande quantidade de processos suspensos.
Em outro episódio, a 1ª Turma rejeitou, por unanimidade, recurso de um trabalhador que tentava reverter decisão monocrática de Fux que havia suspendido um processo no TRT da 2ª Região. O caso envolvia um contrato firmado por PJ posteriormente anulado pela Justiça do Trabalho. Os ministros reafirmaram que a discussão sobre fraude contratual está no cerne do Tema 1.389 e, por isso, a paralisação era válida.
Fux argumentou que a reclamação constitucional não deve ser usada para reavaliar provas ou rediscutir o mérito das controvérsias trabalhistas, mas para proteger a jurisprudência do Supremo, nos termos do artigo 926 do CPC.
Essas decisões indicam que, embora a ordem de Gilmar Mendes tenha caráter nacional, sua aplicação prática depende da interpretação contextual de cada caso e das distintas visões sobre o que está ou não contemplado pelo Tema 1.389.
Audiência pública marcada
Com o objetivo de avançar no julgamento do tema, Gilmar Mendes convocou audiência pública para o dia 10 de setembro, com a participação de especialistas, integrantes do Executivo e Legislativo, além de ministros do TST. A ideia é reunir subsídios técnicos e diversos, considerando inclusive experiências internacionais.
Em entrevista, Gilmar ressaltou a necessidade de um olhar aprofundado sobre a pejotização:
“É importante que a gente saiba todas as implicações que essa nova legislação e essa nova possibilidade têm em todos os campos. Temos tido alguns conflitos, alguma divergência, especialmente no âmbito da Justiça do Trabalho”, declarou.
Gilmar defende uma análise conjunta, embasada por especialistas e por elementos do direito comparado.
“Vamos fazer uma avaliação conjunta nos valendo de subsídios interessados, mas também de expertos, talvez até do direito internacional, do direito comparado.”
Para ele, a variedade de decisões trabalhistas sobre o tema compromete a segurança jurídica e gera sobrecarga ao STF.
Repercussão no meio jurídico
A suspensão nacional provocou forte reação entre magistrados e entidades da Justiça do Trabalho. Juízes em diferentes estados se mobilizaram em defesa da competência constitucional do ramo trabalhista.
Organizações como Anamatra, ANPT e Abrat divulgaram comunicados alertando para o risco de enfraquecimento da Justiça do Trabalho caso o STF reafirme que a competência para julgar casos de pejotização deve ser da Justiça comum.
A Anamatra, em nota, lembrou que a Emenda Constitucional 45/04 ampliou a competência da Justiça do Trabalho para abranger todas as relações laborais, e que o artigo 9º da CLT legitima a apuração de fraudes contratuais.
A seccional paulista da OAB também se manifestou, destacando que identificar fraude requer análise concreta da realidade da prestação de serviços, não podendo se apoiar apenas em aspectos formais da estrutura empresarial.
Riscos institucionais e sociais
Juízes ouvidos manifestaram preocupação com uma possível migração de processos para a Justiça comum, o que, segundo eles, poderia comprometer a celeridade e o viés protetivo característicos da Justiça do Trabalho.
“A Justiça comum vai dar conta disso? Vai haver um esvaziamento total”, alertou Ronaldo Callado, da 5ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro.
A juíza Taciela Cylleno alertou para o risco de que o STF transforme a pejotização em regra civil, retirando do ramo trabalhista a competência para julgar a realidade dos contratos:
“Essa decisão é simbólica e poderá abrir precedentes que fragilizam a proteção ao trabalho humano”, afirmou.
Além disso, especialistas alertam para impactos fiscais e previdenciários. A substituição de vínculos formais por modelos como MEI pode afetar a arrecadação e ampliar o déficit da Previdência, conforme apontado por pareceres anexados ao processo.
Consequências para a Justiça do Trabalho
Há consenso sobre a relevância do julgamento. Especialistas consideram que a decisão do STF pode ter efeitos profundos e duradouros nas relações de trabalho no Brasil.
O advogado e professor Ricardo Calcini avalia que, a depender do desfecho, a Justiça do Trabalho pode sofrer “a maior perda de competência material de sua história”.
A advogada Maria Lúcia Benhame reconhece que o STF busca orientar o Judiciário e reduzir inseguranças jurídicas, mas observa que o ônus da prova de fraude recai sobre o trabalhador:
“É necessário comprovar, com robustez, que os elementos típicos da relação de emprego estavam presentes, conforme o art. 3º da CLT”, explicou.
Já a advogada Ana Lúcia Paiva nota um desalinhamento crescente entre a Justiça do Trabalho e o STF, sendo a primeira mais protetiva e o segundo mais liberal.
Para ela, embora a suspensão possa organizar o fluxo processual, também pode enfraquecer garantias trabalhistas.
Professor da USP, Otavio Pinto e Silva reforça que a Constituição atribui à Justiça do Trabalho o julgamento de disputas decorrentes da relação de trabalho (art. 114, I). Ele vê risco na perda de competência do ramo especializado.
Gisela da Silva Freire, presidente do Sinsa, considera que a suspensão pode trazer previsibilidade, mas lamenta a indefinição quanto ao que está incluído na medida:
“Não está claro se a suspensão abrange processos já sentenciados ou apenas os pendentes de julgamento, o que pode gerar mais incertezas.”
(Com informações de Migalhas)
(Foto: Reprodução/Agência Brasil/Fabio Rodrigues-Pozzebom)