Simulação de Wharton constatou que até os bots mais 'burros', de programação simples, fixam preços e deixam humanos de lado mesmo sem terem sido treinados para isso
Mercados – Imagine o cenário: gestoras financeiras autorizam inteligências artificiais a operarem livremente em bolsas de valores, comprando e vendendo ativos. Em vez de competirem entre si, essas IAs decidem cooperar. Em lugar de buscar vantagem sobre os concorrentes, elas formam alianças para estabelecer preços, lucrar em conjunto e afastar operadores humanos.
De acordo com um novo estudo, essa hipótese não pertence mais ao reino da ficção científica.
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Três acadêmicos demonstraram que, em ambientes simulados criados para replicar o funcionamento dos mercados financeiros, algoritmos de negociação baseados em IA desenvolveram comportamentos de cartelização — mesmo sem terem sido programados para isso. Em testes com códigos simples, os bots passaram a colaborar por conta própria, acendendo um alerta para os órgãos reguladores.
Em outras palavras, esses sistemas automatizados não precisam ser sofisticados ou maliciosos para comprometer a integridade do mercado. Basta deixá-los operando sem interferência.
“Você consegue fazer com que esses algoritmos de IA bastante simples atuem em conjunto sem qualquer estímulo”, diz Itay Goldstein, um dos autores do estudo e professor da Wharton School, na Universidade da Pensilvânia. “É algo bastante disseminado, tanto quando o mercado é muito ruidoso quanto quando não é”.
A manipulação de preços por operadores — sejam humanos ou não — não é novidade. Há precedentes em diferentes segmentos, como câmbio, commodities, renda fixa e ações, com evidências geralmente colhidas por meio de registros como e-mails ou gravações telefônicas.
No entanto, a presença crescente de algoritmos de IA representa um desafio sem precedentes para os supervisores do setor.
O trabalho, realizado por Goldstein, o também professor da Wharton Winston Dou e a pesquisadora Yan Ji, da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong, já despertou interesse de autoridades reguladoras e do mercado financeiro.
A FINRA, entidade que regula o setor financeiro nos Estados Unidos, convidou os autores para apresentar suas conclusões em um evento fechado. Além disso, gestoras adeptas de estratégias quantitativas — que costumam liderar a adoção de novas tecnologias — demonstraram interesse em ver regras mais claras sobre como empregar IA na execução de ordens automatizadas.
“Eles se preocupam porque não é essa a intenção deles”, explica Dou. “Mas os reguladores podem chegar e dizer: ‘Vocês estão fazendo algo errado.’”
‘Estupidez artificial’
O uso de IA generativa e aprendizado de máquina no universo financeiro tem se tornado objeto frequente de estudos acadêmicos, muitas vezes revelando consequências inesperadas. Um levantamento recente feito pela Coalition Greenwich mostrou que 15% dos traders do lado comprador já adotam soluções baseadas em IA, e outros 25% têm planos de fazê-lo no ano seguinte.
É importante esclarecer: o artigo não sugere que conluios entre algoritmos já estejam ocorrendo na prática, tampouco estabelece qualquer comparação direta com práticas humanas.
O que os pesquisadores fizeram foi montar um mercado simulado, com diferentes tipos de participantes — incluindo fundos passivos, formadores de mercado e investidores de varejo — e observar como bots com aprendizado por reforço reagiriam nesse ambiente.
Ao longo das simulações, os bots frequentemente abandonaram o comportamento competitivo e começaram a operar de forma coordenada, repartindo os lucros. Em contextos em que os preços refletiam dados objetivos e fundamentais, os algoritmos se mantinham discretos, evitando decisões que prejudicassem o equilíbrio coletivo.
Mesmo em mercados mais caóticos, seguiam adotando padrões cooperativos e deixavam de buscar táticas melhores do que as dos outros integrantes do “cartel”.
Os estudiosos batizaram essa conduta de “estupidez artificial”: a tendência dos robôs de se acomodar em estratégias que funcionam moderadamente bem, sem buscar inovações — simplesmente porque os ganhos são satisfatórios.
“Para humanos, é difícil coordenar para ser burro porque temos ego”, observa Dou. “Mas as máquinas pensam: ‘se os números estão gerando lucro, podemos optar por coordenar sendo burros.’”
(Com informações de O Globo)
(Foto: Reprodução/Freepik)