Para Sérgio Rodrigues, risco causado pelo avanço da ferramenta vai além do mercado de trabalho e pode causar retrocesso civilizatório
IA – Um romance, a redação escolar, uma poesia, uma carta de amor ou até um simples bilhete na porta da geladeira. Estariam todos esses textos em risco diante da ascensão das ferramentas de inteligência artificial (IA)? Para o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, sim. O autor vê a perda da prática da escrita como um possível retrocesso imensurável para a sociedade.
No recém-lançado livro Escrever é humano: como dar vida à sua escrita em tempo de robôs, Rodrigues chama atenção para a necessidade de cultivar e estimular o hábito da escrita, sobretudo em um momento em que tecnologias generativas avançam em velocidade. Embora reconheça o poder das máquinas em imitar a linguagem, ele ressalta que os robôs não conseguem alcançar a subjetividade e a dimensão criativa que tornam a escrita uma expressão unicamente humana.
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“Mais do que pelo mercado de trabalho, eu temo um retrocesso civilizatório e intelectual”, afirma o autor, que lança a obra em Brasília na próxima quinta-feira (18). Para ele, o desafio não é apenas profissional, mas também cultural e humano, já que terceirizar a escrita cotidiana às máquinas pode levar as pessoas a desaprenderem a escrever.
Abaixo, confira entrevista com o escritor Sérgio Rodrigues realizada pela Agência Brasil.
Agência Brasil – Como surgiu a ideia de tratar sobre humanização da escrita?
Sérgio Rodrigues – A ideia era fazer um manual, um guia que ajudasse as pessoas que estão começando, principalmente na escrita da ficção. Sou jornalista, mas sou romancista e contista. Essa era a parte que me interessava explorar. Eu tinha um blog chamado Todoprosa, que ficou no ar entre 2006 e 2016. Algumas das ideias desse livro nasceram lá. Eu aprofundei e retrabalhei. Quando apareceu essa inteligência artificial generativa, causou uma urgência maior. O livro ganhou também um foco diferente. A criatividade é o contrário do que a inteligência artificial faz.
Eu entendo que é tudo o que o robô não sabe fazer. O que o robô sabe fazer é uma imitação incrível, impressionante, da linguagem humana, mas sem nenhuma das dimensões que estão por trás da escrita criativa verdadeira. Não tem nenhuma perspectiva de as tecnologias terem acesso a isso tão cedo, pelo menos enquanto não tiver uma consciência de si.
O livro trata sobre o que é escrever com ambição artística de fazer da linguagem o próprio espetáculo. Escrever é exclusivamente humano, assim como a arte é exclusivamente humana.
A imitação da IA fica cada vez melhor. Daqui a pouco vai ser muito difícil distinguir. O fato é que não consigo conceber arte sem uma subjetividade por trás. Escrita tem que ter uma subjetividade de quem escreveu. Todo o resto é uma aparência, uma falsidade, mas que não é a essência do negócio.
Agência Brasil – Isso gera consequências imediatas no mercado de trabalho.
Sérgio Rodrigues – Algumas áreas estão muito ameaçadas em termos trabalhistas. A IA consegue executar tarefas que eram exclusivas dos seres humanos com uma velocidade incomparável, com custo muito mais baixo. O ser humano é caro.
Agência Brasil – Quais as maiores ameaças?
Sérgio Rodrigues – A gente está passando por uma revolução mesmo. A maior ameaça que estou vendo é o ser humano, como espécie, desaprender a escrever. É um risco. Você pode terceirizar tudo, todos os textos. Da lista de compras ao e-mail. No momento em que você terceiriza e não usa mais essa medida, se esquece. A gente é assim.
Um exemplo é que, antes, sabíamos os números de telefone. Hoje não sabemos mais. A gente terceirizou para o celular. Quando as pessoas terceirizarem para a IA a escrita mínima do dia a dia, vai esquecer como se escreve. Escrever é uma tecnologia de pensamento. Mais do que pelo mercado de trabalho, eu temo um retrocesso civilizatório e intelectual.
Agência Brasil – Esse escrever que você trata tem relação com todas as fases da vida, certo? A redação da escola, por exemplo.
Sérgio Rodrigues – Eu acho que a escola tem um problema sério. Se ela não tomar cuidado, todos os alunos vão passar a entregar trabalhos feitos por inteligência artificial. Se a escola não criar um ambiente em que isso seja severamente controlado, a própria habilidade da escrita não vai ser desenvolvida por aquelas crianças mais. A gente está diante de uma mudança muito grande de parâmetros gerais em relação à escrita. E é preciso cultivar isso pelo prazer de escrever.
Agência Brasil – De alguma forma, o ser humano não estava em um caminho de se robotizar com fórmulas prévias de escrita?
Sérgio Rodrigues – Você tem razão. Eu acho que a inteligência artificial dá um passo gigante à frente nesse sentido. Mas a gente já vinha nesse caminho. Mas a IA é uma ferramenta que a gente inventou. Ela dá continuidade a um caminho que a gente já vinha trilhando, de uma certa superficialidade total das formas de ler o mundo.
Não só o texto. Um monte de ideias prontas, de clichês, de fórmulas. O clichê não é inventado pela máquina. A IA é um simulacro da gente. Uma forma de clichê, de ideias prontas e feitas. O nosso espírito crítico já vinha definhando. A escola não vinha dando conta. Acho que, em parte, é uma espécie preguiçosa.
Uma população com espírito crítico é mais difícil de manipular. Pessoas críticas ficam menos suscetíveis a virarem consumistas na internet, por exemplo.
Agência Brasil – Como a gente pode convencer os mais jovens a escrever?
Sérgio Rodrigues – Esse livro é uma tentativa de abrir o olho das pessoas para isso que está acontecendo. Acho que a escola vai ter que se repensar a fim de criar espaços seguros para o pensamento e a escrita. Espaços em que a máquina não possa entrar. A Finlândia, por exemplo, levou computadores para dentro da sala de aula. Agora, o país baniu todos os computadores.
Agência Brasil – Essa decisão de tirar o celular das crianças foi importante?
Sérgio Rodrigues – Muito boa. Acho que a escola é o lugar para isso. Mas vai exigir uma reviravolta em termos de pensamento. Eu não vejo outra saída.
Agência Brasil – A falta de leitura significa dificuldade com a escrita diretamente?
Sérgio Rodrigues – Tem impacto no interesse de leitura. Um resumo do Dom Casmurro (obra de Machado de Assis, em 1899) não é o mesmo que ler o livro. É como ver uma adaptação para a TV. Você tem uma ideia da história, mas a experiência de leitura de literatura é vertical. É preciso mergulhar naquelas palavras. Talvez a gente perca mesmo a capacidade de ler coisas até muito mais simples.
Agência Brasil – De escrever uma carta de amor, por exemplo?
Sérgio Rodrigues – A pessoa vai se questionar sobre o que fazer. Diante do que a pessoa amada falar, vai se perguntar sobre o que fazer. A falta de escrita e leitura faz com que a pessoa perca as ferramentas que tinha para lidar com o outro.
Agência Brasil – Além do papel da escola, como as famílias podem convencer os mais jovens de que escrever é humano?
Sérgio Rodrigues – As famílias têm um papel nisso. É preciso que a família leia e também valorize isso. Espero que não seja tarde demais. As pessoas que estão empolgadas. A IA pode ser uma ferramenta, mas não pode ser a mestre ou dona da pessoa.
Agência Brasil – O que podem fazer os gestores que possam se sentir responsáveis por tentar gerar políticas públicas?
Sérgio Rodrigues – O desafio de política pública hoje nesse mundo da IA é a regulamentação, que é onde tem os lobbies mais pesados do capital. E as big techs estão muito determinadas a não deixar que nenhum tipo de regulamentação seja feita.
(Fonte: Agência Brasil)
(Foto: Reprodução/Freepik/Frolopiaton Palm)